Jerónimo de Sousa em entrevista ao Avante!
no 30.º aniversário da Lei Fundamental

A Constituição<br> está do lado dos trabalhadores

João Chasqueira
A Constituição da República, que acolheu e consagrou o essencial das conquistas da Revolução democrática do 25 de Abril, pelo seu projecto de progresso e de justiça social, é o texto de referência fundamental no Portugal democrático. Na passagem do 30.º aniversário da sua promulgação, desse autêntico hino à liberdade nos fala Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral do PCP.

«A Re­vo­lução de Abril foi o acto e o pro­cesso mais avan­çado da nossa época» «O grande mé­rito foi dos tra­ba­lha­dores e do povo, do acto e do pro­cesso re­vo­lu­ci­o­nário» «A Cons­ti­tuição re­co­nheceu, con­sa­grou e de­fendeu a Re­vo­lução»

Nesta entrevista ao Avante! é explicada, por exemplo, a razão pela qual, tendo sofrido tantos ataques, visando empobrecê-la, a Lei Fundamental, ainda assim, continua a ser um instrumento da maior importância na luta pela democracia e pela construção de uma sociedade melhor.

O PCP, desde o pri­meiro mo­mento, con­si­derou a Cons­ti­tuição um «texto de­mo­crá­tico e avan­çado». O que é que lhe con­fere essa qua­li­dade ?

É o seu carácter de projecto de uma democracia que coloca como indissociáveis as suas vertentes política, económica, social e cultural, aliadas à defesa da soberania e independência nacionais.

É de facto sin­gular que a Cons­ti­tuição tenha con­fe­rido aos di­reitos dos tra­ba­lha­dores a força e a dig­ni­dade de um ca­pí­tulo in­se­rido no tí­tulo dos di­reitos, li­ber­dades e ga­ran­tias.

A excepcional importância que a nossa Constituição dá aos direitos individuais e colectivos dos trabalhadores tem, com efeito, um significado profundo porque mostra que a Constituição não é neutra. Ou seja, no confronto dilemático entre os interesses económicos e os interesses e direitos dos trabalhadores, a Constituição não ficou no meio, não ficou «em cima do muro». A Constituição fez uma opção: pôs-se do lado dos trabalhadores e dos seus direitos, incluindo-os, por isso, não no texto geral da Constituição, mas no seu capítulo mais nobre – o dos direitos, liberdades e garantias.
Creio que isto tem ainda mais significado na medida em que, em relação aos limites materiais da sua revisão, a Constituição diz claramente que esses direitos não devem ser mexidos. Trata-se, pois, em primeiro lugar, de uma opção de fundo dos constituintes, da Constituição. Pode dizer-se hoje que a realidade é bem diferente. Sim, é diferente. Mas se aprovam um código do trabalho com aquela natureza o que está errado é o código não é a Constituição. Esta questão dos direitos dos trabalhadores sujeitos a agressões através de leis ordinárias tem sido muito silenciada mas tem um valor tão importante que podemos dizer que na actual relação de forças constitui um importante instrumento dos trabalhadores para a defesa dos seus direitos.

Os avanços da contra-re­vo­lução vi­eram mos­trar, en­tre­tanto, que a Cons­ti­tuição, só por si, não foi su­fi­ci­ente nem é um ga­rante efec­tivo de de­fesa das con­quistas de­mo­crá­ticas.

Estes avanços contra-revolucionários e a desfiguração e até eliminação de normas e princípios democráticos e avançados da nossa Constituição, que tiveram um desfecho negativo para os trabalhadores, para o povo e o País, ocorreram porque houve uma mudança qualitativa nas opções do PS. Como é sabido não há nenhuma revisão que possa ser feita sem dois terços dos deputados. Ora o PS mostrou sempre uma grande disponibilidade para essas revisões. E no Governo – recorde-se que o PS teve diversas maiorias nas eleições legislativas – não só deu cobertura como protagonizou essas revisões que fragilizaram a Constituição. A verdade é que com as suas políticas e através de leis acabou por dar um alento e até, nalguns casos, diria mesmo, tomar a dianteira e ser mais responsável que a própria direita no plano da concretização de graves alterações, particularmente na questão económica.
Porque esta é a questão de fundo: enquanto a Constituição considera indissociável a democracia económica da democracia social – há uma dialéctica, uma ligação estreita entre estas duas vertentes, tal como em relação à democracia cultural e à democracia política – , o PS, através do incentivo que deu à recuperação e à restauração do capitalismo, levou a uma situação que noutros países era já experiência: as constituições defendem-se, efectivam-se, quando existem forças políticas e sociais capazes de as defender e efectivar. Ora a grande alteração que aqui ocorreu foi de facto o PS – que teve grandes responsabilidades na feitura e na aprovação da Constituição – ter sido o partido que na Assembleia da República e no Governo mudou de posição.

Olhando para as sete re­vi­sões, estás de acordo que esta é uma his­tória de pro­gres­sivo em­po­bre­ci­mento e perda de so­be­rania?

Um deputado da direita muito conhecido usava uma expressão em relação às revisões constitucionais que era a seguinte: «exigir sempre tudo, para conseguir sempre muito». Creio que este princípio tem sido aplicado porque o PS, em nome de uma alegada posição de equilíbrio - entre os que, como nós, disponibibilizando-se para aperfeiçoar o texto constitucional nunca perderam de vista a sua defesa, e os que a queriam e querem destruir -, acabou sempre, mas sempre, em nome dessa teoria do equilíbrio, por ceder. Está por saber se a cedência é real ou se faz isso por opção, mas essa é outra questão que fica em aberto.

O certo é que por trás desse falso equi­lí­brio o que houve foram acordos e ne­go­ci­atas entre o PS e o PSD, muitas vezes à margem da AR.

O PS sistematicamente negociou, com efeito, por «baixo da mesa» e fora da comissão com poderes de revisão e do plenário da Assembleia. Por isso afirmamos que as revisões foram más não apenas no conteúdo mas também na forma.
O processo era simples mas eficaz. A direita exigia a revisão que constituiria, caso fosse aprovada, a demolição da Constituição de Abril e o PS aparecia como defensor da «revisão possível», cedendo, cedendo sempre à direita. Na revisão seguinte outra vez o mesmo filme. Até aos dias de hoje. Basta olhar para os actuais projectos do PSD e do CDS.

Das me­xidas na Lei Fun­da­mental pro­du­zidas nestes trinta anos, quais são as que con­si­deras mais graves?

Destaco duas revisões. A de 1982 e a de 1989. Se a revisão de 82 eliminou importantes normas sobre a estrutura da economia, particularmente eliminando o princípio da propriedade colectiva dos meios de produção como garantia da efectivação dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais, as formas autogestionárias nas unidades de produção geridas pelo Estado, a revisão de 89 foi mais fundo, eliminando o princípio da irreversibilidade das nacionalizações, estabelecendo a reprivatização de titularidade ou de direito de exploração dos meios de produção e outros bens nacionalizados, exclui princípios fundamentais dos «limites materiais de revisão», suprime bens e unidades de produção com posse útil e gestão colectiva dos trabalhadores.
É nela que se aplica um rude golpe na Reforma Agrária ao eliminar a transferência da posse útil da terra aos que nela trabalham através da expropriação dos latifúndios e explorações capitalistas.

O que sig­ni­fica que apesar do ca­rácter pro­gres­sista da Cons­ti­tuição, tal não obstou à re­cu­pe­ração ca­pi­ta­lista nem à res­tau­ração do poder dos grandes grupos eco­nó­micos e dos se­nhores do di­nheiro.

Se foi eliminado o princípio da irreversibilidade das nacionalizações, se foi eliminado o princípio de expropriar os grande latifudiários e entregar a terra a quem a trabalha para a realização de uma reforma agrária, se esses princípios foram eliminados, é evidente que se assistiu imediatamente à reconstituição dos latifúndios e por outro, à constituição de grupos económicos poderosos que começaram a beneficiar das privatizações entretanto executadas. Porque se o PS, na revisão de 89, abriu essa possibilidade, quando a direita conseguiu uma maioria absoluta (designadamente as maiorias de Cavaco Silva), evidentemente que a primeira coisa que fizeram foi aproveitar-se dessas alterações à Constituição para dar sentido prático às privatizações, entregando ao grande capital empresas de grande valor que, a estes anos de distância, e olhando para o chamado PSI20, são empresas que estão a dar tanto lucro aos seus accionistas que este ano, por exemplo, esse montante poderia de uma penada resolver o défice das contas públicas. Obviamente que esta entrega teve consequências no plano da fragilização da democracia económica.

Não será er­rado dizer que grande parte dos pro­blemas com que o País se con­fronta são, afinal, também, em larga me­dida, o re­sul­tado deste re­tro­cessos cons­ti­tu­ci­o­nais.

Alias, numa análise mais fina, vê-se que com as revisões, primeiro, houve claramente uma estratégica de liquidação da nova estrutura económica criada pela revolução, o faseamento da reconstituição da estrutura económica do capitalismo monopolista, para, só a seguir, noutras revisões, começar o assalto aos direitos laborais e sociais.
Aquilo que teve uma perspectiva estratégica foi de facto a liquidação da nova estrutura económica criada com a Revolução – isso é que era determinante, a devolução do poder económico ao grande capital – para de seguida, obviamente, com as revisões, sobretudo na de 1997, dirigir o ataque contra os direitos dos trabalhadores, designadamente o direito à greve (através da chamada criação dos serviço mínimos). Por isso esta nossa avaliação do carácter indissociável das vertentes da democracia, política, económica, social e cultural.

Con­cordas que há então um des­fa­sa­mento entre o que diz a Cons­ti­tuição e o que os su­ces­sivos go­vernos têm feito nestes 30 anos. O que é que está fora do sítio e não bate certo?

Independentemente da gravidade e do empobrecimento democrático que resultaram de sucessivas revisões, ainda assim tendo em conta que ela comporta um projecto progressista e de justiça social o que não bate certo e está fora do sítio como dizes é a falta de efectivação das suas normas e princípios. Isto apesar do Estado estar obrigado a respeitá-la. Isto apesar de todos os juramentos solenes que designadamente o Presidente da República faz.


Em rigor, pode dizer-se que os go­vernos, em muitos mo­mentos, têm agido à margem da Lei e mesmo ou­tros ór­gãos de so­be­rania a têm in­ter­pre­tado muito de­fi­ci­en­te­mente ?

É evidente. Por violação ou omissão, por falta da sua efectivação.

Vi­vemos pois num re­gime de­mo­crá­tico, com li­ber­dades for­mais, muito am­plas, mas bem longe da de­mo­cracia eco­nó­mica, cul­tural e so­cial de que fala a Cons­ti­tuição.

Repara que depois da ofensiva económica, da ofensiva social e laboral que está em curso, já começa a ser a própria democracia política a estar em causa, designadamente através do anúncio e das tentativas de alteração das leis eleitorais, da lei dos partidos políticos e da lei do financiamento dos partidos. Existe um pouco a ideia, traduzível nesta expressão: «esta é a democracia onde nós podemos dizer o que quisermos enquanto eles podem fazer o que querem». Existe o direito de falar, o direito de votar, o direito de manifestação, mas tudo aquilo que seja participação, intervenção, luta, respeito pelo princípio da proporcionalidade, aí, a própria democracia política começa a ser mutilada tendo em conta que os partidos que se revêem e que se subjugam aos grandes interesses económicos inquietam-se, por exemplo, com um PCP que, do lado do povo, do lado dos trabalhadores e com a Constituição como referência, procura manter vivo o ideal de Abril e o grande projecto avançado que o texto constitucional comporta.

Os di­reitos foram con­quis­tados

pelos tra­ba­lha­dores e o povo



Tens cer­ta­mente pre­sente esse dia 2 de Abril de 1976 em que a As­sem­bleia Cons­ti­tuinte pro­mulgou a nova Cons­ti­tuição. O que guardas na me­mória como facto mais mar­cante?

O momento em que colocámos a assinatura no texto constitucional e a votação que levou à sua aprovação. Esses foram os momentos mais marcantes, tendo em conta todo um percurso, a ofensiva e as tentativas claras da direita mais reaccionária de tentar impedir que ela fosse aprovada e promulgada.

Esse es­forço da di­reita de­sen­volveu-se ao longo de todos os tra­ba­lhos da Cons­ti­tuinte ?

Claro. Quando a direita percebeu que o texto constitucional estava a acolher e a consagrar aquilo que era conquista, participação, intervenção dos trabalhadores e do povo português, mais inquieta essa direita ficava, sobretudo pelo conteúdo da Constituição económica. Quando falo da direita, refiro-me ao capital monopolista, ainda não totalmente derrotado e que, conjuntamente com os partidos da direita, integrou essa ofensiva, levantando obstáculos muito sérios a que ela fosse aprovada. Creio que mais do que a questão da liberdade, mais do que tal ou tal direito social, o que levava a direita a reagir assim era de facto o conteúdo da Constituição económica e esta ser na prática o reconhecimento da vitória da Revolução de Abril. Por isso tentaram, mas perderam.

Essa ten­ta­tiva de travar a apro­vação da Cons­ti­tuição tem afinal a ver com o pró­prio curso e com­ple­xi­dade do pro­cesso re­vo­lu­ci­o­nário.

Exacto. Aliás, um dos sinais dessa tentativa de desviar e de adiar a elaboração e aprovação da Constituição foi por exemplo a criação de um chamado período de antes da ordem do dia. Sucede que a Constituinte - que tinha como sua única e exclusiva obrigação fazer a Constituição -, começou, perante esse enxerto feito pela direita, com a contribuição do PS, numa clara tentativa de a desviar da sua tarefa exclusiva, a usar esse período antes da ordem do dia para atacar o Movimento das Forças Armadas, para atacar os capitães de Abril, para atacar os trabalhadores e a sua luta, procurando assim, digamos, transformar a Constituinte e dar-lhe um conteúdo legislativo e de fiscalização da acção governativa que ela, naturalmente, não tinha.
Chegaram a exigir um plebiscito para aprovação da Constituição e, depois de gorado o intento, confiando numa maioria de direita na AR, queriam que a própria Constituição conferisse ao Parlamento a faculdade de a modificar para, como é óbvio, a subverter de seguida.
Não pouparam esforços para travar o curso dos acontecimentos e dar um conteúdo reaccionário a muitos artigos.

Não foi só na Cons­ti­tuinte. Por essa al­tura, em muitas áreas do País, as li­ber­dades fun­da­men­tais não es­tavam as­se­gu­radas – os in­cên­dios aos CTs do Par­tido são disso tes­te­munho - , im­pe­rando a lei da bomba e do ca­cete.

Numa grande parte do País, com efeito, tendo em conta o poder dos caciques e o papel das forças reaccionárias, o PCP, por exemplo, foi claramente impedido de desenvolver a sua acção e de ter iniciativas políticas. Essas forças reaccionárias recorreram a uma violência trauliteira que ia desde a agressão ao boicote das nossas iniciativas e até mesmo ao ataque bombista, à destruição e queima dos nossos Centros de Trabalho, o que significou inclusivamente a perda da vida de alguns camaradas. Isto um ano decorrido do 25 de Abril... Era um factor que condicionava o exercício das liberdades e que condicionava mesmo o nosso próprio resultado eleitoral. Se não podíamos fazer campanha eleitoral, se não podíamos exercer as liberdades nessas regiões, é evidente que depois os resultados não eram verdadeiramente democráticos.
As eleições para a Assembleia Legislativa, o primeiro acto de aplicação da Constituição, foram assim condicionadas em muitas regiões por um poder local reaccionário.

Qual o papel que ti­veram na As­sem­bleia Cons­ti­tuinte, em todo este pro­cesso, os de­pu­tados co­mu­nistas?

Foi um papel importantíssimo. Em primeiro lugar, pela sua própria proposta de um projecto de Constituição da República que, no essencial, visava consagrar o regime democrático nas suas vertentes política, económica, social e cultural. Um projecto de Constituição que acabou por ter um amplo acolhimento por parte de outras forças, designadamente do PS. É preciso sempre lembrar que a Assembleia Constituinte tinha 250 deputados e que o PCP só tinha 30. Portanto, quando se fala numa Constituição do PCP ou numa Constituição fruto da vontade do PCP, isso constitui uma falsidade histórica. O PS tinha uma maioria relativa, trabalhou e votou a favor. O próprio PSD, condicionado pelo que estava a acontecer nas ruas, nos campos, nas cidades, nas empresas, votou também a favor, por exemplo, estou a pensar, a via do socialismo.

Mas foi da ban­cada co­mu­nista que veio o con­tri­buto de­ci­sivo...

Este papel do Grupo Parlamentar do PCP, dos deputados constituintes comunistas, foi importante mas não teria sido tão determinante se a Constituição não estivesse a ser escrita neste país, tendo em conta a Revolução de Abril.
Sem nenhum desvalor para o nosso trabalho, para o nosso empenhamento, para o nosso combate às tentativas de adiamento e de não concretização da sua aprovação, creio que é justo sublinhar que o grande mérito foi de facto dos trabalhadores e do povo, do acto e do processo revolucionário. A tal maioria que permitiu a aprovação do texto final – a maioria PS e PCP -, ela própria foi o resultado dessa dinâmica popular, dessa vontade e dessas aspirações populares.
Quem quer saber o que foi a Revolução de Abril deve ler a Constituição da República. O grande mérito da Constituinte e dos seus deputados foi sofrerem a influência e acabarem por acolher essa dinâmica, essa pujança criadora da nova realidade que estava em curso na sociedade portuguesa.
Muitas vezes dá-se todo o mérito aos constituintes por terem, por exemplo, dado consagração constitucional ao direito à greve. Mas ainda os constituintes não o eram e já os trabalhadores, em difíceis condições, tinham conquistado e realizado esse direito. Os constituintes tiveram o mérito de a consagrar, mas não a criaram; quem criou os direitos, quem conseguiu as conquistas foi a luta dos trabalhadores e do povo.

A ela­bo­ração da Cons­ti­tuição é por­tanto in­se­pa­rável do pro­cesso re­vo­lu­ci­o­nário e da sua di­nâ­mica.

Claramente inseparáveis. A consagração dos alicerces jurídicos da revolução democrática, que os constituintes souberam edificar, é indissociável da dinâmica do movimento popular e da acção dos trabalhadores. Por isso digo: os que desejem saber o que foi a Revolução de Abril, sobretudo os mais jovens, folheiem a Constituição, que nela encontrarão o que ela foi.

E o que re­pre­sentou do ponto de vista da es­ta­bi­li­dade e da con­so­li­dação da jovem de­mo­cracia ?

Podemos dizer que as massas e a sua dinâmica estavam mais avançadas que a Assembleia Constituinte. Mas esta, no momento em aprovou a Constituição, foi o garante, a estrutura jurídica que não só reconheceu como consagrou e defendeu a própria Revolução. A Constituição, logo após a sua aprovação, assumiu-se como o primeiro obstáculo ao processo contra-revolucionário e à tentativa de recuperação do poder perdido por parte da direita social e política. No fundo, a Revolução casou com a Constituição e constituiu um elemento já não só de reconhecimento mas de defesa, tendo em conta o que viria a seguir.

Sem a luta dos tra­ba­lha­dores e a acção das massas po­pu­lares, pode dizer-se, pois, que muito di­fi­cil­mente te­ríamos esta Cons­ti­tuição?

Não teríamos, sem dúvida! O grande mérito dos constituintes e da Constituição foi acolher e consagrar em Lei o que era aspiração e conquista dos trabalhadores. Repito: não inventaram o direito de greve, de contratação colectiva, a liberdade sindical, a formação e o exercício de direitos das comissões de trabalhadores, por exemplo. Quem os criou, conquistou e efectivou foram os trabalhadores.
Ou seja, a Assembleia Constituinte não decidiu nem definiu as grandes transformações económicas e sociais operadas com a Revolução de Abril. Mas teve a virtude de as reconhecer e consagrar.

Um dos epi­só­dios que ficou a marcar os tra­ba­lhos da Cons­ti­tuinte foi a cé­lebre ma­ni­fes­tação de ope­rá­rios da cons­trução civil em frente à AR, que ali se man­ti­veram no que foi visto como um se­questro dos de­pu­tados. Numa pri­meira fase, só os de­pu­tados co­mu­nistas pu­deram sair. Porquê ?

A pergunta pressupõe algumas reposição de verdade histórica. Os trabalhadores da construção civil estavam num processo reivindicativo e o seu objectivo era pressionar o Governo e não a Constituinte.
É conhecida a expressão célebre e ofensiva que o então primeiro-ministro dirigiu aos manifestantes. Radicalizou-os e permitiu que os sectores «esquerdistas» assumissem a liderança da concentração. Os deputados não saíram por receio justificado e compreensível. Os manifestantes não decidiram que aqueles saíam e aqueles outros não. Aliás, durante a saída de manhã dos deputados, descontado o radicalismo verbal, não aconteceu nenhuma agressão.

Um pro­jecto pro­gres­sista e de jus­tiça so­cial

Apesar das mu­ta­ções a que foi su­jeita, acre­ditas que a Cons­ti­tuição per­ma­nece como um sério obs­tá­culo ao apro­fun­da­mento da po­lí­tica de di­reita ?

Sem dúvida. Bastar ler os projecto da direita, as declarações dos senhores da finança e dos grupos económicos que num ajuste de contas histórico com Abril e a Constituição que dele resultou, na sua ânsia de aumentar a exploração e de recuperação de todas as parcelas do domínio perdido com a revolução libertadora do 25 de Abril, tentaram, tentam e tentarão alterá-la e desfigurá-la.

É cor­recto dizer, igual­mente, que a ma­triz ori­ginal do texto cons­ti­tu­ci­onal não foi des­fi­gu­rada?

Foi empobrecida mas se lermos a Constituição continua, apesar de tudo, a constituir uma plataforma civilizacional, um projecto de progresso e de justiça social e neste sentido, apesar destes golpes que sofreu, continua a ser um instrumento fundamental na luta pela democracia portuguesa. Creio que quando nós criticamos esses golpes, esses enfraquecimentos e esses empobrecimentos – e pode parecer uma contradição mas não é –, não significa que desvalorizemos o que continua a estar consagrado na Constituição. Aliás, se há embuste que deveria ser desmistificado é o seguinte: é dizer, como faz esta direita social e política, que estas políticas e estas revisões são feitas em nome da modernidade, quando, no essencial, o que eles procuram é o retrocesso de 30 anos, o retrocesso aos tempos em que a democracia era inexistente. Este permanente ajuste de contas com o 25 de Abril não tem nada de moderno, pelo contrário, o seu conteúdo é de retrocesso, de recuo, de passadismo.

Po­demos con­cluir, pois, que a luta em de­fesa da Cons­ti­tuição não só não é inútil como é uma ban­deira cen­tral em de­fesa do re­gime de­mo­crá­tico e das suas con­quistas?

Sim para defender o regime democrático, para defender o direito ao trabalho com direitos, o direito à saúde, ao ensino, à segurança social, à justiça social e, em última análise, para defender a própria liberdade.

Nas úl­timas pre­si­den­ciais, tu pró­prio, aliás, pu­seste o acento tó­nico na ne­ces­si­dade de cum­prir e fazer cum­prir a Cons­ti­tuição.

No quadro das presidenciais e tendo em conta que o Presidente da República tem de jurar defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição era natural que todos os candidatos, sem excepção, tivessem como referência não um programa próprio ou governamental mas que tivessem como seu grande programa a Constituição de Abril. Porque o Presidente da República, ao jurar defender, é esse garante. Nesse sentido, trazer à ordem do dia a nossa Lei Fundamental pareceu-nos uma questão crucial e incontornável daquela batalha eleitoral.
Mas, como já disse, hoje, o problema da nossa Constituição é a falta da sua efectivação. Estamos a falar das coisas concretas que afligem o nosso povo, afligem os trabalhadores. Se a Constituição reconhece como direito fundamental o direito ao emprego e à segurança no emprego e hoje vemos as precariedades e inseguranças a crescerem cada vez mais, está-se a ferir e a desvalorizar este comando constitucional. Com a privatização na saúde está-se a ferir o que a Constituição considera como direitos universais. O mesmo em planos como a educação, a segurança social. Se hoje assistimos à ida de militares portugueses para outros países ocupados a toque de caixa dos interesses do imperialismo então, não estamos a cumprir e efectivar as normas constitucionais que apontam para um mundo de paz, onde Portugal deve ter um papel de solidariedade e de cooperação com todos os povos do mundo.
Quando falamos da falta de efectivação, da omissão, para além das violações – como aconteceu com o código do trabalho – é evidente, tendo presente o pensamento político de Cavaco Silva, actual PR, que não é difícil admitir que continuarão a ocorrer situações de não efectivação e de omissão, o que permitirá que leis injustas acabem por desvalorizar a Lei das leis, a nossa Constituição.

De­fender a Cons­ti­tuição é, por con­se­guinte, lutar pela sua efec­ti­vação e as­sumi-la como um pro­jecto de fu­turo?

Sim. Aplicá-la numa perspectiva de futuro, num Portugal de progresso e democrático. Um futuro que é já hoje. Não estamos numa posição meramente defensiva, mas com uma visão avançada. Por muita força que tenha a direita, por muita carga ideológica que procurem dar, a realidade é esta: a Revolução de Abril foi o acto e o processo mais avançado da nossa época contemporânea. Por isso mesmo temos esta Constituição, neste nosso tempo. Se os poderes instituídos a respeitassem, cumprissem, efectivassem, creio que muito dos problemas que temos não existiriam e que Portugal poderia seguir na senda do progresso, do desenvolvimento, da paz.

... um Por­tugal me­lhor.

Teríamos certamente um Portugal melhor. Com o povo a viver melhor.

Achas que a ge­ne­ra­li­dade dos por­tu­gueses co­nhece a Cons­ti­tuição ? E já agora: o que te pa­rece a ideia da sua di­vul­gação nas es­colas?

Uma vez fui a um debate a uma escola primária sobre o 25 de Abril e a Constituição. Quando acabou um aluno levantou-se e disse: «vocês nunca nos disseram isso antes, nunca nos deram a ler a Constituição». Referia-se aos políticos em geral. Aquela mensagem – aparentemente injusta, pois, pela nossa parte, poderíamos dizer: mas nós falámos – comportava de facto, por um lado, desconhecimento, mas por outro, o interesse na aprendizagem sobre o verdadeiro conteúdo da Constituição da República e da verdade de Abril que, como é sabido, foi praticamente varrido dos livros escolares. Nesse sentido esta divulgação e sua inserção numa área pedagógica teria um grande interesse, porque obviamente estamos a falar de jovens que, tendo nascido já depois do 25 de Abril, não têm a obrigação de a conhecer. Hoje para eles a liberdade é algo tão natural como o ar que respiram. Sabem que no futuro podem votar, manifestar-se, mas não conhecem esta plataforma civilizacional, este projecto de democracia e de sociedade que a nossa Constituição comporta. E não conhecem porque por parte dos sucessivos governos houve sempre um esforço para esconder a verdade de Abril e o conteúdo da Constituição.

A ver­dade é que a gente de­fende o que ama, e só ama o que co­nhece...

Exactamente. Só se ama o que se conhece... Embora, já agora, valha a pena dizer o seguinte: alguns tiveram uma paixão pela Constituição, mas foi uma paixão passageira.

Mas quem ama, porque a conhece, encontra nela uma grande referência, para a sua luta, para a sua forma de estar na sociedade e na vida. Encontra razões fortes para a defender.


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